Divulgação/O TempoPesquisadores que trabalham na linha de frente da investigação da Covid-19, muito deles lidando com amostras de pacientes contaminados pelo vírus Sars-CoV-2 e cobaias infectadas, não foram incluídos nos grupos prioritários para a vacinação.
Há um movimento em curso pedindo às autoridades de saúde que incluam esses grupos nos planos de imunização. Muitos desses cientistas atuam no desenvolvimento de vacinas, medicamentos e testes diagnósticos, além linhas de pesquisa para entender a dinâmica da doença e suas sequelas.
Os pesquisadores que conseguiram ser vacinados até agora o foram por meio de acordos locais, entre as universidades e os municípios. Mas, na falta de uma política clara que os coloque como prioritários, a maioria segue sem imunização. Um abaixo-assinado reúne assinaturas de quase mil pesquisadores pelo país que enfrentam essa situação. 
O ministro, os secretários da Saúde, o governador, todo mundo diz que segue a ciência. Mas parece que quem faz a ciência foi cancelado, não existe. Os cientistas são invisíveis, diz o pesquisador Fernando de Queiroz Cunha, professor do departamento de farmacologia da USP Ribeirão Preto.
Ali, ao menos 80 pesquisadores estão há mais de um ano trabalhando com o vírus e não foram vacinados. Uma parte deles trabalha em ambiente NB-3, cujo risco de contaminação é semelhante ou até superior ao de uma UTI Covid, porque trabalha com com amostras e camundongos infectados, diz Cunha.
Ele justifica o risco superior ao fato de que, quando um paciente infectado está na UTI, ele está sedado, não faz estripulias. O camundongo pode brigar, te morder, pode acontecer uma contaminação grande. A gente usa duplas luvas, o ar que respiramos na sala NB-3 é filtrado, mas, ainda assim, tem risco de contaminar. Essas pessoas trabalham de segunda a domingo, não tem horário, explica.
Cunha diz que os cientistas já recorreram a todas as instâncias da USP, da Prefeitura de Ribeirão Preto e do governo paulista, mas o impasse continua.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto diz que segue a orientação do PNI (Programa Nacional de Imunizações), que a distribuição e quantidade de doses são efetuadas pelo governo paulista e que os municípios não têm autonomia para mudar as prioridades do estado.
Já a Secretaria de Estado da Saúde informa, também em nota, que aqueles que atuam em laboratórios e os acadêmicos em saúde estão incluídos nas subcategorias de trabalhadores da saúde. As doses para todos os públicos-alvo são enviadas aos municípios para aplicação nas pessoas que o integram, sendo prerrogativa da prefeitura deflagrar as estratégias necessárias para imunizar tais públicos.
No laboratório de miocrobiota e imunomodulação coordenado pela professora Angélica Vieira, do departamento de bioquímica e imunologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), ninguém ainda foi vacinado, apesar de os alunos irem até a casa de pacientes infectados para coletar amostras de sangue e de fezes.
O foco da pesquisa é tentar compreender as sequelas de quem teve Covid-19, a partir da resposta inflamatória pulmonar, e buscar opções terapêuticas para preveni-las. Eles não só vão até as casas dos pacientes como depois manipulam essas amostras no laboratório. Mesmo com o exame PCR negativado, existe a hipótese de o vírus ainda estar presente nas fezes, o que aumentaria muito o risco de infecção.
Recentemente, pela falta de segurança, a pesquisa foi freada. Não quero prejudicar meus alunos. Muitos dependem do transporte público para se deslocar até a universidade, um risco vai se somando ao outro. A gente precisa encontrar uma forma de proteger esses jovens cientistas, diz que ela, que também ainda não foi imunizada.
Para Marcelo Mori, que coordena a força-tarefa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), de uma forma geral, os pesquisadores que trabalham na linha de frente com estudos sobre a Covid-19 acabaram sendo negligenciados na política de vacinação.
A contribuição dos cientistas brasileiros para entendimento da Covid-19, tratamentos, novas variantes, tem sido muito grande, com muitas publicações internacionais relevantes. Para isso tudo acontecer, requer gente trabalhando, não só os professores, mas principalmente os alunos de pós-graduação.
Ele lembra que em uma política normal de laboratórios de risco biológico elevado, as pessoas que ali trabalham precisam ser protegidas, inclusive vacinadas. É uma condição necessária para que essas pessoas continuem trabalhando.
No caso da Unicamp, houve um entendimento com a instituição e os cientistas foram vacinados. Mas como não existe uma política pública de vacinação para esse grupo, ele tem que brigar. Algumas instituições conseguem, outras não.
O virologista Rafael Elias Marques, pesquisador do CNPEN (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), conta que, desde o início da pandemia, ele e os alunos frequentam um laboratório NB-3 e estiveram expostos aos estoques de vírus e às amostras contaminadas.
Eu e alguns alunos que lidamos com amostras de pacientes infectadas, tivemos a felicidade de ter recebido a primeira dose [da vacina] porque estamos ligados à força-tarefa da Unicamp.
Porém, Marques diz que colegas de outras regiões do país continuam sem acesso à vacina. Cientistas que estão processando amostras, fazendo diagnósticos, trabalhando com modelos animais e in vitro, com pacientes, essas pessoas devem ser vacinadas com prioridade.
Ele afirma que no ano passado houve um surto de Covid no laboratório onde atua e foi preciso fechá-lo e colocar 60 pessoas que atuam em pesquisas de testes diagnósticos em quarentena. É um risco que existia e que continua a existir. Nós, cientistas, estamos sofrendo pressão de vários setores da sociedade. Ou a nossa palavra não é ouvida ou não temos os recursos adequados para fazer o trabalho que precisa se feito.
Para a química Vanderlam Bolzani, presidente da Aciesp (Academia de Ciências do Estado de São Paulo), é um contrassenso das autoridades esse esquecimento daqueles que fazem a ciência brasileira a andar. Ela diz que a Aciesp encaminhou ofício à Secretaria de Estado da Saúde pedindo que os cientistas sejam colocados nas listas de prioridades de vacinação.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde diz que não foi localizada solicitação da Aciesp, mas que, de todo modo, tanto o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19 definido pelo Ministério da Saúde quanto os documentos técnicos do Plano Estadual de Imunização de São Paulo deixam claras as subcategorias de trabalhadores de saúde, e os cientistas estariam incluídos nelas