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Após 25 anos, trote violento no interior de SP não teve pena para estudantes de medicina; relembre caso que chocou o país

G1 - com informações do G1

Rastro101
Com informações do G1

30/08/2023 por Redação

Caso ocorreu no dia 7 de agosto de 1998, em Sorocaba. Rodrigo Peccini, na época com 19 anos, teve 24% do corpo queimado depois que estudantes atearam fogo nele enquanto dormia. Atualmente, os envolvidos no caso não possuem pendências com a Justiça e exercem a profissão. República Máfia, em Sorocaba (SP), onde o trote violento aconteceu; foto de 1998
TV TEM/Reprodução/Arquivo
Há 25 anos, em agosto de 1998, um trote violento em uma universidade particular de Sorocaba (SP) chocou o país. Rodrigo Peccini, na época com 19 anos, teve 24% do corpo queimado depois que estudantes atearam fogo nele enquanto dormia.
O caso aconteceu depois de uma maratona alcoólica, evento em que calouros e veteranos do curso de Medicina disputavam entre si uma corrida entre diversas repúblicas. O percurso era composto por pontos de parada, nos quais os estudantes deveriam beber doses de bebidas alcoólicas e latas de cerveja.
Após a competição, Rodrigo voltou até a república onde morava para dormir. No entanto, foi surpreendido por outros estudantes, que molharam seu corpo com álcool e atearam fogo. A história repercutiu pelo Brasil e reascendeu um alerta entre as autoridades a respeito da violência nos trotes universitários.
Em 2023, mais de duas décadas depois, o g1 revisitou detalhes do caso. Conforme apurado pela reportagem, nenhum dos acusados tem pendências com a Justiça e todos exercem a profissão normalmente. Os envolvidos foram procurados pela equipe, mas não quiseram dar entrevista.
Relembre o caso
Caso aconteceu depois que estudantes participaram da maratoma; foto de 1998
TV TEM/Reprodução/Arquivo
O caso ocorreu no dia 7 de agosto de 1998, por volta de 0h30, no interior da república de estudantes denominada Máfia. Rodrigo participou da chamada “maratoma”, uma espécie de prova de resistência realizada em duplas.
Os estudantes eram amarrados e deveriam dar a volta em um quarteirão, onde haviam outras quatro repúblicas. Durante a prova, havia paradas onde eram oferecidos baldes de cerveja e cachaça. Os que completassem o trajeto em menos tempo e sem passar mal, eram considerados os vencedores.
Depois de participar do evento, Rodrigo teria voltado para a república para dormir. Segundo a ação, ele foi retirado do quarto em que estava e levado para a cozinha, onde um grupo de veteranos fazia outra brincadeira.
Dois dos acusados molharam o corpo da vítima com álcool e o terceiro acendeu o isqueiro, queimando o corpo do calouro. Rodrigo foi levado até o hospital, que ficava a cerca de 200 metros do local.
Conforme apurado pela TV TEM na época, ele teve 24% do corpo queimado, e passou por três cirurgias.
Rodrigo Peccini após receber alta, em setembro de 1998
TV TEM/Reprodução/Arquivo
Pouco menos de um mês após o acidente, o jovem recebeu alta do hospital. Na ocasião, Rodrigo afirmou, em entrevista à Folha de São Paulo, que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para que os culpados fossem punidos.
“Vou lutar na minha vida a partir de agora para que esse médico seja condenado e os dois estudantes sejam expulsos”, disse à Agência Folha. A universidade expulsou os envolvidos, no entanto, nenhum deles foi condenado pelo crime.
Passo a passo do desenrolar jurídico
Todos os acusados, um médico e dois estudantes, foram indiciados pela Polícia Civil em 12 de agosto de 1998. Na Justiça, eles chegaram a ser pronunciados, procedimento para aqueles que vão a júri popular, em 7 de agosto de 2003. A decisão que confirmou a pronuncia ocorreu em 14 de julho de 2007.
Entretanto, houve um revés no caso, e os três acusados foram despronunciados em 21 de outubro de 2008, após vários recursos. O Ministério Público (MP) tentou recorrer, mas em 11 de setembro de 2013, foi publicado o resultado da decisão sobre o julgamento dos embargos, mantendo a despronúncia dos acusados.
Com isso, em função da desclassificação, os três passaram a responder pelos crimes de lesões corporais graves ao invés de homicídio. Na sequência, um dos acusados pediu o reconhecimento da prescrição da pena.
Julgamento do caso foi realizado em 9 de novembro de 2017
TV TEM/Reprodução/Arquivo
No julgamento do caso, em 9 de novembro de 2017, o juiz Cesar Luis de Sousa Pereira lembrou que, contando a partir da data do fato, já haviam passado 12 anos. Portanto, já se encontra extinta a punibilidade dos réus, afirmou.
O processo foi arquivado definitivamente em 22 de janeiro de 2018.
Sofrimento emocional
De acordo com a doutora em psicologia e mestre em psicologia escolar Cristina Maria DAntona Bachert, o estudante que passa por uma situação de violência durante eventos como o trote universitário pode desencadear episódios de depressão ou ansiedade.
Essa atitude mais expositiva, de deixar alguém em uma situação vexatória, fragilizada [...] fazer isso com essa pessoa é fazer com que ela tenha um prejuízo muito grande, porque ela pode ficar na faculdade, mas é possível que ela tenha menos oportunidades de aproveitar toda a vivência acadêmica, porque ela fica com receio de que aquela situação possa acontecer principalmente em um lugar onde talvez ela esteja fora dos domínios da faculdade, e que aí ela tenha uma sensação menor de proteção, explica.
A gente está falando de um sofrimento emocional que pode prejudicar a autoestima, o próprio senso de identidade dessa pessoa. Ela pode ter um índice maior de faltas, pode ficar mais desmotivada, completa.
Trotes violentos na região
Universitária foi abordada em cantina de faculdade de Sorocaba
TV TEM/Reprodução/Arquivo
Além de Peccini, outros casos semelhantes também repercutiram na região. Em 2016, por exemplo, o Ministério Público abriu um inquérito para apurar trotes violentos em uma faculdade de medicina de Sorocaba.
A investigação foi aberta com base no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) que investigou ilegalidades nos trotes em universidades do estado.
Dentre os relatos dados por estudantes da cidade durante a CPI, estava a obrigação de comer fezes, e até ter que correr nu.
Em fevereiro de 2017, uma universitária de 18 anos foi socorrida após ser encontrada alcoolizada e desacordada em frente a uma faculdade da cidade depois de participar de um trote. Na época, a mãe da caloura registrou um boletim de ocorrência e ainda denunciou um dos alunos por assédio.
A pergunta que fica é: por que esse ritual de passagem? Isso não é uma coisa só de São Paulo, do Brasil. Quando a gente olha para as irmandades, para as casas das universidades americanas, também existem situações semelhantes. Parece que é um ritual de passagem para você fazer parte de um grupo novo, um grupo de graduação, pontua Cristina.
Conforme a especialista, apesar dos casos dos últimos anos, os trotes violentos vêm perdendo força. É uma coisa que ficou meio que restrita a uma época e que tende a haver mudanças. As universidades têm se posicionado veementemente contra para que esse tipo de situação não aconteça nas dependências da universidade, ou da faculdade, explica.
Estudantes da PUC em Sorocaba depõem na CPI dos Trotes na Alesp nesta quinta (29)
Ricardo Kobayaski/divulgação
Combate nos centros acadêmicos
O professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Antônio Zuin, explica que a prática de trotes entre universitários é muito antiga e não acompanha mais as mudanças que a sociedade alcançou.
Os trotes começaram com o surgimento das primeiras universidades europeias, muitos séculos atrás. É algo que vem de uma hierarquia historicamente construída, que age como se o mais velho tivesse direito de domesticar o mais novo. Não faz mais parte do que entendemos enquanto sociedade, ressalta.
O professor é autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação. Na opinião dele, muitos calouros aceitam participar destas situações por medo de serem excluídos ao longo do curso.
Os estudantes entram na universidade com desejo de fazer parte, é uma nova fase da vida. Então, muitas vezes, aceitam participar de situações desconfortáveis pelo medo da exclusão, afirma o professor.
Professora Antônio Zuin estuda a prática de trotes universitários e formas de combater a violência
Arquivo Pessoal
Zuin acredita que alguns centros acadêmicos ainda agem de forma resistente no combate aos trotes.
Muitas universidades toleram os trotes mais violentos e só tomam alguma atitude quando acontece uma tragédia, morte, exposição. Os centros precisam entender que têm responsabilidade neste enfrentamento. Os estudantes precisam saber que, quando buscam apoio nos centros acadêmicos, vão ser acolhidos e protegidos, não expostos.
E, quando as situações ocorrem fora das faculdades e universidades, o professor da UFSCar reforça que, ainda assim, é necessário que o centro acadêmico se responsabilize.
Mesmo se for em uma república, nas redes sociais, independentemente, nenhum espaço é sem lei. E é importante que a universidade atue também nestes casos, pois os estudantes representam os locais onde estudam, afirma.
Para Zuin, é urgente que uma lei nacional seja criada e possa amparar estudantes e universidades que atuam no combate aos trotes. A lei nacional precisa responsabilizar a universidade por omissão. Caso isso ocorra, também precisa dar proteção à universidade que combate à violência, nos casos em que há expulsão do estudante, por exemplo, finaliza.
O que diz a legislação
Em dezembro de 1999, mais de um ano após o ocorrido com Rodrigo Peccini, uma lei passou a proibir trotes em todo o estado de São Paulo.
Outros estados também aderiram a leis parecidas, como Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul, mas ainda não há uma proteção nacional, aprovada pelo Congresso, conforme explica Gabriela Marques, advogada e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Sorocaba.
Existe um projeto de lei que está sendo estudado no Senado Federal desde o começo de agosto. O PL 445/2023 viria para proibir qualquer prática de trote universitário em todo o país, comenta.
Se aprovada, a lei diz que quem praticar trotes poderá sofrer desde medidas disciplinas até responder criminalmente, inclusive com cumprimento de pena.
Mas esta não é a primeira tentativa de aprovar uma medida nacional, segundo Gabriela. Em 2015, outro projeto de lei foi entregue ao Senado Federal. O PL aplicava penas na instituição de ensino e ainda tipificava a prática na Lei de Contravenções Penais, mas a proposta foi arquivada, conta.
Apoio da OAB
A OAB de Sorocaba orienta os estudantes a procurarem o órgão para pedir ajuda e relatar casos violentos em espaços acadêmicos.
Existem diversas comissões da OAB que podem atuar nestas situações. O estudante vai ser orientado sobre qual comissão ele deve procurar, dependendo do que aconteceu com ele, da natureza da violência. A comissão encaminha para o órgão competente e ajuda o estudante durante o processo, explica Gabriela.
Em Sorocaba, a OAB fica na Rua Vinte e Oito de Outubro, 840, no Jardim do Paço.
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